BASTIDORES DE UM SUICÍDIO O que relatarei a seguir é fruto de uma experiência assustadora. Ou melhor, enlouquecedora. Peço que confie em mim e que me empreste sua atenção por alguns minutos. Mas que seja um ato verdadeiro, não gentil ou profissional. Cansei de psicólogos e psiquiatras. Chamo-me Ezequiel. Sou filho único, hoje tenho 20 anos, perdi minha mãe quando nem mesmo sabia o que era ter uma. Desde os oito meses de vida meu velho e falecido pai cuidou de mim. Ou tentou. Coitado de meu velho. Morreu como um louco. Jurava ver espíritos, fantasmas, assombrações por todos os lados. Mas nem sempre foi assim, sabe? Essas visões infernais e diabólicas começaram quando eu tinha sete anos, meu pai nessa época anotava 30 primaveras. Ele trabalhava em uma fazenda, a mesma em que morávamos. Era um verdadeiro canivete suíço de seu patrão. Caçava, cortava, gerenciava. Fazia tudo, mas caçar era seu fardo favorito. Costumava me levar com ele sempre, desde que eu não fizesse barulho na hora errada. Aprendi muito com meu velho. Certa vez, me lembro claramente, acredita? Fomos para uma caçada, adentramos na mata sob a luz da lua cheia. Inauguramos naquela madrugada um rifle dado de presente pelo patrão de meu pai pelos seus bons serviços prestados, vassalo fiel. A caçada não foi boa, nada saiu como o esperado e tudo se iniciou ali. Estávamos no rastro de nossa presa quando meu pai tropeçou e caiu. Ouvi um disparo, pensei que ele havia se ferido com a arma. Apontei a lanterna em sua direção e vi sangue em suas mãos, antes que me desesperasse ele tratou de me acalmar. Bateu a cabeça em uma pedra, nada mais, me alertou com uma cara de frustração que ficava mais acentuada sob a luz amarelada da lanterna de pilhas. Depois desse incidente os devaneios de meu pai começaram. Há um homem aqui, dizia ele amiúde. Uma mulher também - acrescentava depois. Assustado como uma criança nas madrugadas, era assim que via meu pai andando pela casa pequena de cinco cômodos. Crianças, seres infernais eram aqueles que atormentavam o juízo de meu velho, duas crianças que sorriam e perguntavam sobre seus pais. Por vezes o velho respondia que não sabia de nada, gritava para que eles o deixassem em paz. Agradeço pela meuip.co paciência, sei que não sou nenhum Nabokov, mestre com a narrativa em primeira pessoa, mas ainda assim você está aqui. Aquelas duas garotinhas levaram meu pai ao caixão anos depois e me trouxeram até aqui. Por isso sou grato pela sua companhia, nem nos conhecemos e você me emprestou seus olhos e ouvidos, muito obrigado, já não me sinto só. Pensando bem, nunca estive só. Quando meu pai se suicidou, perdi a razão. Demorou tempo para que encontrasse uma estrada a seguir. Terminei o ensino médio com dificuldades, agora estou no segundo semestre da faculdade de Sociologia. Há quatro meses eu quis matar a saudade de meu pai após visitar seu túmulo. Resolvi caçar. Levei seu rifle comigo, não consegui capturar nada, mas atirei em uma presa ou outra, sem sucesso. Quando voltei senti alguns enjôos. Na semana seguinte comecei a ver o que julgava serem fantasias de meu pai. Seus fantasmas passaram a fazer moradia em minha mente. A falar comigo. Não todos, as duas garotas apenas. Meu pai suportou essa agonia por muito tempo. Meus 20 anos pesam mais que 40. Não consigo mais me concentrar nas aulas. Vejo esses perdidos em todos os lugares. Já pedi o auxílio de Deus e o Diabo. De pastores, padres, pai e mãe-de-santo, mas nada resolve. Nem mesmo os remédios de tarjas pretas não os afastam de mim. Agora mesmo eles estão aqui, juntos pela primeira vez. Todos eles, como uma família pronta para o tradicional retrato de natal. Olho para eles, olho para o velho rifle de meu pai, penso, repenso, planejo, calculo e nada faço. Nada, nada, nada. Uma amiga sugeriu que eu mudasse de casa, aceitei o conselho, mas as coisas permaneceram iguais. O aluguel era caro então tratei de voltar para a casa da fazenda. Já que tudo era igual, não fazia sentido gastar o que não tinha e alimentara especulação imobiliária. Por falar nessa amiga, ela ficou de vir aqui hoje, mas estou tão cansado e ela está atrasada. Vejo essa família mórbida, sinto saudades de meu velho. Preciso descansar. Foi bom ter com quem conversar. Por favor, tampe os ouvidos e feche os olhos, vou descansar agora, não precisarei mais desses comprimidos, os deixarei aqui sobre a mesa, por favor, nem pense em consumi-los, eles viciam. Até mais.
